Um ano após anúncio de Doria, vacina Butanvac está emperrada em testes

Um ano após o anúncio da vacina “100% brasileira” produzida pelo Butantan contra o coronavírus, a Butanvac encontrou obstáculos nos testes iniciais em humanos e está com cerca de dez milhões de doses prontas paradas no instituto.

Segundo o diretor do Butantan, Dimas Covas, o ensaio clínico da vacina teve que ser remodelado devido ao avanço da vacinação contra o coronavírus no Brasil. Agora o imunizante é avaliado como um reforço, ou seja, para estimular novamente a resposta imune contra o vírus em indivíduos já vacinados.

Tal percalço não era esperado pelo governo paulista, que encomendou a produção de dez milhões de doses já em abril de 2021. Agora o estoque corre o risco de ter o prazo de validade expirado.

Procurado, o Butantan não respondeu até quando o produto valeria. Fontes ouvidas pela reportagem contam que normalmente é de um ano o período para esse tipo de imunobiológico. À Folha de S.Paulo, a Anvisa disse que, se as unidades vierem a vencer, terão de ser descartadas.

No dia 26 de março de 2021, o governador de São Paulo, João Doria, apresentou o que seria a primeira vacina “100% brasileira” contra o coronavírus. O anúncio, porém, não dizia que a vacina tinha sido, na realidade, desenvolvida por pesquisadores da Escola de Medicina Icahn do Hospital Mount Sinai, em Nova York, como foi revelado pela Folha.

O Mount Sinai disse ser o detentor da tecnologia e responsável pelos testes pré-clínicos em animais. A instituição afirmou que testava o imunizante em forma de consórcio com diversos países de renda média e baixa com capacidade de produção em larga escala, incluindo o Brasil.

Diferentemente de outros imunizantes, a Butanvac utiliza como vetor o vírus da doença de Newcastle, que acomete normalmente aves. A produção é feita em ovos embrionados, o que traz vantagens, uma vez que ela se baseia em uma tecnologia já dominada para fabricação da vacina da gripe, mais barata, e que não depende de IFA (ingrediente farmacêutico ativo) importado.

No mesmo dia do anúncio, o Butantan enviou à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) um pedido para iniciar os testes em humanos -horas depois de outra candidata a vacina, a Versamune, com apoio do governo federal, ter feito a mesma solicitação.

Após a revelação da procedência do imunizante pela Folha, Doria disse que não tinha conhecimento da origem americana da vacina, mas garantiu que ela estaria disponível para os brasileiros até julho de 2021, mês em que, na realidade, só conseguiu começar a ser testada.

A Anvisa autorizou o ensaio clínico da Butanvac no dia 9 de junho e, um mês depois, tiveram início os primeiros testes em voluntários brasileiros.

No plano inicial de estudo, o Butantan esperava avaliar a segurança e imunogenicidade (capacidade de gerar resposta imune) da Butanvac em comparação com outras vacinas já em uso, como a própria Coronavac, produzida no mesmo instituto.

Com o atraso para o início dos ensaios clínicos, no entanto, o avanço da imunização da população brasileira, especialmente no estado de São Paulo, tornou mais difícil àquela altura encontrar voluntários que não houvessem recebido ainda nenhuma vacina, para compor o grupo controle dos estudos.

O instituto ampliou então os centros de teste, incluindo participantes de outros estados, como Minas Gerais, mas mesmo assim teve dificuldades em encontrar os cerca de 400 voluntários iniciais.

Após nove meses desde a autorização dos testes, os primeiros dados divulgados da Butanvac foram de um ensaio de fase 1 feito na Tailândia. Os resultados apontam que a vacina se mostrou segura e induziu resposta imune de maneira semelhante à da Pfizer.

Segundo Covas, os testes da fase 1 no Brasil, com 320 voluntários, foram concluídos com “resultados satisfatórios” no final de janeiro. Tais resultados, porém, ainda não foram oficialmente divulgados.

De acordo com a Anvisa, o instituto solicitou, em 5 de novembro, uma emenda ao pedido de testes, adequando as fases do estudo e trocando o teste de placebo (quando é dado um produto sem efeito) por um com indivíduos imunizados com a Coronavac.

A agência afirmou ainda que não foram apresentados resultados desse estudo ou avaliadas novas fases da pesquisa até sexta-feira (25).

“O conjunto final desses estudos vai permitir que essa vacina seja utilizada em termos mundiais. É uma vacina com grande esperança para os países participantes e a própria OMS [Organização Mundial da Saúde], que já manifestou que essa será uma excelente opção para reforço”, afirmou.

Em nota, o Butantan disse também que o desenvolvimento da Butanvac caminha para a fase 2, com previsão de conclusão ainda em 2022.

“A fase 1 foi encerrada e os dados ainda estão em análise, mas os resultados preliminares são positivos. (…) Há o potencial de produzir aproximadamente dez milhões de doses, dependendo dos dados finais da fase 1”, afirmou.

No Brasil, apesar dos avanços nos últimos anos na pesquisa farmacêutica e imunobiológica, só cerca de uma em cada 20 candidatas a vacina consegue atravessar o chamado “vale da morte”. A expressão é empregada quando a pesquisa pré-clínica possui resultados satisfatórios, mas a instituição de pesquisa ou o desenvolvedor não tem condições de avançar nos testes que envolvem de centenas a milhares de pessoas.

Assim como ocorreu em diversos países do mundo durante a pandemia, é comum que a tecnologia ou a plataforma para uma nova candidata a vacina seja elaborada em um instituto de pesquisa ou universidade, mas, para obter sucesso e ingressar no mercado, necessite do interesse de uma grande farmacêutica. Esse foi o caso, por exemplo, da vacina de Oxford em parceria com a AstraZeneca (no Brasil, produzida na Fiocruz).

Para diminuir a quantidade de projetos que caem no “vale da morte”, especialistas defendem que haja uma autonomia dos países, especialmente de baixa e média renda, para a produção dos fármacos necessários.

Recentemente, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação anunciou um convênio com a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) para um novo centro de produção de vacinas, que desenvolverá, inclusive, imunizantes contra a doença de Chagas, chikungunya e malária.

Na capital paulista, além da planta já existente, a nova fábrica do Butantan produzirá, além da Coronavac com IFA nacional, outras três vacinas: raiva, zika e hepatite A.

De acordo com Covas, a produção em escala da fábrica deve ter início somente em 2023. As próximas etapas a serem cumpridas são a instalação dos equipamentos e a certificação do local e dos produtos a serem produzidos junto à Anvisa, antes de poder ser iniciada a fabricação em massa.

Da Folhapress (Ana Bottallo)