Projeto de Cunha quer dificultar vítimas de estupros a terem acesso ao aborto

A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados deve aprovar um projeto de lei que cria uma série de empecilhos para mulheres vítimas de violência sexual praticarem aborto na rede pública de Saúde.

Fontes ouvidas pelo iG e levantamentos feitos pela reportagem mostram que o PL 5069/2013, de autoria do presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), tem folga de votos para os defensores do texto, cuja votação é prevista para ocorrer já na próxima semana. Se aprovado pela comissão, o projeto segue direto para o Plenário.

Atualmente, no Brasil, o aborto é permitido em três casos específicos: quando a gravidez coloca em risco a vida da gestante; quando a gestação for consequência de um estupro; e no caso de o feto ser anencéfalo, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal.

O projeto de lei de Eduardo Cunha não altera os casos em que a prática é regularizada, mas cria empecilhos para a realização do aborto. O texto prevê, por exemplo, a obrigação de exame de corpo de delito para comprovar a violência sexual sofrida pela vítima em decorrência do estupro. Hoje, o testemunho da pessoa no serviço de saúde é suficiente para o procedimento, sem exigência de provas.

Além disso, o projeto prevê o aumento de pena a profissionais saúde que tratarem ou mesmo informarem essas pessoas de como proceder em caso de desejo de abortar após estupro – o que pode incluir perigosamente a distribuição das chamadas pílulas do dia seguinte. Na legislação atual, se uma mulher relata ter sido vítima de estupro, recebe gratuitamente uma pílula do dia seguinte como medida para evitar a fecundação. É a chamada profilaxia da gravidez – termo que o projeto também tenta eliminar da legislação por, em teoria, criar uma ligação entre gestação e doença.

Não são poucas as críticas ao texto, que teve alguns pontos alterados por seu relator, o deputado Evandro Gussi (PV-SP), um dos parlamentares a celebrar a aprovação do Estatuto da Família ao lado de Marco Feliciano (PSC-SP) e outros colegas das bancadas conservadoras no final de agosto.

Organizações de profissionais de saúde e grupos em defesa dos direitos das mulheres veem o texto como inconstitucional e contra a vida. “É uma aberração, um retrocesso completo. Primeiro, porque revoga a lei que já existe de atendimento à violência, dificultando ainda mais o acesso das mulheres às políticas públicas. Segundo, porque impede o agente da Saúde de atuar na defesa da vida da mulher, levando ao judiciário um problema que não pertence mais a ele”, analisa a psicóloga Rosângela Talib, coordenadora-executiva da ONG Católicas em Defesa da Vida, que luta pela legalização do aborto no País. “O atendimento já é difícil agora. Por que complicá-lo ainda mais?”

Aprovação quase certa
Apesar das críticas a respeito do PL é improvável que o texto não seja aprovado na CCJ quando entrar em votação. Entre os 66 deputados titulares na comissão, apenas dois, ou 3% deles, são mulheres. Somando os suplentes, o número cresce um pouco, com sete parlamentares do sexo feminino, ou 5,3% do total de 132 deputados dentro do grupo – proporção ainda inferior à já baixa relação de gênero dentro da Câmara, onde apenas 51 das 518 cadeiras são ocupadas por mulheres (10%).

Além disso, 29 dos 66 titulares da comissão fazem parte da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família, bancada conservadora que se concentra em fazer lobby contra projetos pró-aborto na Câmara – 43% da CCJ. Segundo fontes consultadas pelo iG, a ampla maioria dos parlamentares é favorável ao texto apresentado.

“Surpreende-me que muitas mulheres sejam pró-aborto, até porque a maioria dos fetos é de mulheres. É estranho”, argumenta o deputado federal Evandro Gucci. “As mulheres que tentam assassinar um inocente, que é o feto, que não pode se defender, cometem um crime ainda mais grave do que o assassino de uma pessoa adulta ou de uma criança, que podem se defender. Defendemos a vida e não que a mulher pratique um crime ainda pior do que aquele de bandidos nas ruas deste País.”

Ações de repúdio
É justamente contra argumentos como os defendidos por Gucci que as poucas deputadas integrantes da CCJ lançaram nesta semana uma carta aberta a profissionais de saúde pedindo apoio para impedir a aprovação do projeto. O texto enfatiza que trechos do PL, como “anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto”, podem levar a interpretações dúbias de magistrados, capazes de impedir o tratamento adequado à vítima de violência na rede pública.

“Este projeto não pode prosperar, pois diz respeito à saúde física, mental e psicológica das mulheres e pode afetar para sempre a vida de todas elas. Simplesmente não tem sentido colocá-lo em pauta, mas, infelizmente, de tempos em tempos, temos de enfrentar grupos extremamente conservadores, representados por deputados como o Evandro Gucci e o próprio autor do projeto, o presidente da Casa, Eduardo Cunha”, critica a deputada Cristiane Brasil (PTB-RJ), abertamente contrária à legalização do aborto e uma das vozes dissonantes na comissão em relação ao projeto. Ela e Maria do Rosário (PT-RS) são as únicas mulheres entre os membros titulares da CCJ.

“Eu jamais diria a uma amiga que deveria matar o bebê no ventre, mas não se pode obrigar a mulher, depois de sofrida a violência sexual, a sofrer uma segunda violência, que é o exame de corpo de delito. O corpo é violado em um ato de sumissão por um ser doente e ela ainda tem de mostrar suas partes a desconhecidos só por que o Estado quer que ela prove que sofreu violência?”

A carta destaca que o aumento de pena para profissionais da área que prestarem atendimento a essas mulheres, de 5 para 10 anos de reclusão, acabará se impondo como uma barreira para atuação de médicos, enfermeiros e farmacêuticos nesses casos, pois estes poderiam optar por não mais ajudar as vítimas por temor da severa punição.

 

“A legislação atual dá amplo acesso às vítimas sobre seus direitos e considera violência sexual qualquer forma de atividade sexual não consentida, mas a proposta elimina esses direitos e só considera violência sexual os casos que resultam em danos físicos e psicológicos”, resume o texto.

A apreciação do projeto deveria ter ocorrido já na semana passada, mas as poucas deputadas presentes na comissão pediram audiência pública para discutir os diversos pontos negativos inseridos no PL. Em mesa presidida pela deputada suplente da CCJ Érica Kokay (PT-DF), na quinta-feira (1º), médicos e promotores de Justiça emitiram seus pareceres de repúdio ao projeto, alegando que ele sequer deveria ter entrado em discussão.

“Como mostram as pesquisas, mulher que diz que foi estuprada foi realmente estuprada e sofre com a amargura e a condição dessa experiência”, disse, na ocasião, a médica Ana Costa, presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde. “Precisamos punir os estupradores, não colocar as mulheres para serem ainda mais humilhadas depois de terem sofrido a violência.”

Por David Shalom – iG