Literatura com Luiz Júnior: São Paulo: ame-a ou deixe-a

O que é arte?

A pergunta está no centro dos debates no município de São Paulo desde que a administração João Doria assumiu no início do ano e declarou guerra às pichações. Neste ato, também interferiu nos Grafites que estavam espalhados pela cidade.

Uma das diferenças apontadas entre os homens e os animais está exatamente na capacidade de produzir arte. Mas até mesmo esta definição pode ser fadada a erros – basta ver o balé hipnótico que algumas Aves-do-Paraíso fazem para conquistar sua fêmea.

Mas uma característica única do ser humano é a capacidade de fazer arte de contestação, usando-a para comunicar algo que está em desacordo com sua visão de mundo.

A arte deve ser bela?

Não necessariamente.

Quando Wassily Kandinsky lançou seu fantástico “Quadro branco sobre fundo branco”, foi duramente criticado – porém estava sendo lançada ali uma revolução na forma de encarar as artes pictóricas. Afinal, a invenção da fotografia havia colocado uma questão fundamental na cabeça dos artistas realistas: se a fotografia é capaz de reproduzir com exatidão a realidade, para que finalidade continuaremos a pintar? Kandinsky, mesmo sem o saber, estava lançando as bases da arte abstrata.

Na música, o nascimento da Bossa Nova está intimamente ligado à contrariedade de diversos artistas com a música de orquestra. Para eles, um banquinho e um violão seria o necessário para a criação de obras belas. Mas inicialmente está atrelada a um grito revolucionário, contra as elites e a favor de uma identidade cultural brasileira.

Na escultura, Marcel Duschamps irá assombrar o mundo ao exibir um vaso sanitário como arte. A pergunta que ficou na cabeça remete inicialmente à pergunta que abre este artigo. A arte pode ser contestatória, pode ser utilizada sim de forma a chocar, a comunicar. Pode ser um grito de revolta, para chamar a atenção de quem está vendo.

Assim, a arte não precisa ser bela.

Durante sua história, ela serviu para demonstrar a angústia do ser humano. Münch, com “O Grito”, e Picasso, com “Guernica” são provas disso. O pavor que o homem sentia perante o início do século XX e, sobretudo, com as duas guerras mundiais inspiraria não só estes, mas muitos outros autores.

A arte também se revoluciona, se adequa às novas tecnologias. A fotografia – produto científico e mercadológico – pode ser usada não só para retratar eventos diários fotojornalísticos, como também para ser arte – as fotografias autorais.

A internet surge como uma ferramenta potencial para aprimorar as técnicas pré-existentes e também para criar novas formas para novos artistas divulgarem suas obras, livre dos desejos do mercado. Assim foi também no início dos anos 80 com os sambistas independentes. Devíamos nos libertar não só da ditadura militar como também da ditadura do mercado.

O cinema também traria formas de arte puramente populares – como as pornochanchadas, que levavam multidões para o cinema no final da década de 70. Dá para dizer que as produções nacionais deste período não são formas de arte quando comparadas com movimentos como o Cinema Novo no Brasil ou a Nouvelle Vague francesa? A primeira vontade é dizer “não, isto não é arte”. Mas basta apurar o olhar para perceber o quanto esta afirmação é incorreta. A pornochanchada, como arte, é um reflexo da sociedade brasileira dos anos 70, ludibriados pela mídia de então acerca do tal “milagre brasileiro”.

Portanto, a arte também pode se tornar um instrumento político.

O século XX também traz um componente absolutamente novo ao panorama artístico: a urbanização. O crescimento das cidades traz novos elementos à paisagem – elementos que também vão lutar para deixar sua marca registrada pelo direito à cidade.

É isso que o debate em São Paulo deve levar em conta: o direito à cidade.

Movimentos como os cineclubes, o pagode, o funk em sua vertente plenamente brasileira, o grafite, as pichações, os quadrinhos, a poesia e a literatura de cordel servirão, sobretudo, para mostrar que há uma classe de pessoas vivendo na periferia e que estão invisíveis, que estão pedindo para ser ouvidas. E qual a melhor forma de se fazer isso do que deixando visível na paisagem sua marca?

Curioso como, no meio destes debates, ouvimos alguns argumentos sobre a grafitagem de famosos, como Kobra, Os Gêmeos e outros, e calculando seu valor pelo preço real que a prefeitura pagou por eles e não pelo seu valor intrínseco. Por qual motivo uma grafitagem do Kobra vale mais do que a de um “invisível”? Porque eles se elitizaram não é uma boa resposta. Estamos falando, intrinsecamente, sobre o direito à cidade, e não sobre História da Arte.

Uma das características da arte no século XXI, aliás, é sua efemeridade – e esta também é uma característica do nosso cotidiano! Nossa vida é tão fugaz quanto as esculturas de manteiga nepalesas. Basta o sol sair para ver o quão efêmera é sua existência. E tanto grafiteiros quanto pichadores sabem disso. Um pichador sabe que sua arte será apagada, mais dia menos dia. Portanto, não se revoltará contra a pintura e a renovação de fachadas.

Mas a sua mensagem não será apagada.

Nunca será.

Não podemos nos esquecer dos invisíveis, daqueles que, de forma “bela” ou não, deixam sua marca na paisagem e pedem para ser ouvidos. Apenas isso: ser ouvidos.

Afirmar – como o prefeito afirmou – que quem não estiver contente que deixe a cidade é uma forma de dizer que nem todos são bem-vindos à cidade de São Paulo. Apenas a elite e aqueles que estão afinados com um discurso construído socialmente.

Na metrópole global chamada São Paulo de hoje vale a velha frase dos anos 1970: ame-a ou deixe-a. E como a cidade foi construída por sucessivas migrações, ao dizer isso o prefeito demonstra não conhecer o processo de formação da própria cidade que comanda.

Para saber mais:

livroA arte moderna

Giulio Carlo Argan

Companhia das Letras

Preço Médio: R$ 150,00

 

livro1A condição espacial

Ana Fani Alessandri Carlos

Editora Contexto

Preço médio: R$ 30,00

 

*Luiz Junior é astrólogo, produtor de cinema e escritor. É autor de O Templo da Magia e de O livro de Luaror, pela Editora Autografia. Dirigiu, roteirizou ou produziu os curtas “Osasco, 1910”, “A Mente”, “Desiderium, Desiderata”, “Pelos direitos dos meninos” e “Amor de Infância”. Tem poemas lançados na Europa e na América do Sul pela Chiado Editora. Produz diariamente o horóscopo deste jornal e as colunas de astrologia e literária.