Jornalista “cozinha” com Vikings. Sim, eles são reais em Cotia

Por Carla Castellotti – Fotos Larissa Zaidan (Vice)

De uma Kombi, saiu um grupo de pessoas até então à paisana e todo tipo de aparato: madeiras, tecidos, uma estrutura de ferro para cozinhar e um baú. Em 40 minutos, a parafernália virou um acampamento, num terreno em Cotia, na Grande São Paulo, com direito a uma réplica de tenda encontrada num navio Viking em  Oseberg, na Noruega, uma fogueira de acampamento, lanças, escudos, roupas e toda sorte de utensílios pra cozinhar.

Em mais um encontro, os membros do Vestanspjor se reuniam pra fazer o que eles mais curtem, recriar a forma de vida dos Vikings. Mas não qualquer Viking. E sim os representantes desse povo nórdico que viveu, mais especificamente, entre os anos 800 e 1.100 D.C. Sim, o recorte temporal, me contou Lucas Carvalho, 26, é bem preciso porque a onda desse fandom paulistano é o recriacionismo histórico. Altamente perfeccionistas e aficionados por medievalismo, os sete integrantes do grupo procuram reviver a cultura dos povos tidos como bárbaros.

Criado em 2016, o Vestanspjor (termo que significa “lanças do oeste”, sendo o oeste pros povos escandinavos algo desconhecido) reúne pessoas que estudam a Era Viking e destrincham, num blog e na sua página no Facebook, verdades e mentiras sobre a história desses povos. A pecha de bárbaros, por exemplo, é falsa. Quem me conta isso é Matheus Pastrello, 25, estudante de História na USP, ao dizer que há registros que dão conta sobre a vaidade dos homens Vikings que “escovavam barba e cabelo e decoravam suas casas”. Matheus diz que uma das provas disso é que um dos mais antigos achados da Era viking é justamente um pente. Bárbaro foi um adjetivo dado a eles pelos Cristãos, um povo com quem disputavam terras.

Enquanto o acampamento era montado em Cotia, os integrantes do grupo me contaram que outro rótulo que costuma colar sobre os fandoms ligados ao medievalismo é uma suspeita de que essas pessoas sejam defensoras da supremacia branca por fazerem reverência a um povo originariamente nórdico. Na página do Vestanspjor no Facebook, inclusive, há um aviso que condena “veementemente de quaisquer opiniões fascistas, racistas, homofóbicas, sexistas ou de qualquer outra natureza preconceituosa e degradante.”

Por outro lado, Matheus me conta que o recriacionismo do grupo nem sempre é levado a sério por colegas universitários. Ao chamar outros colegas de curso na USP pra conhecer o grupo, ele me diz que muitos dizem que não vão ser “cosplay de historiador.” Algo que, aparentemente, não abala nem um pouco o esforço do grupo que constrói por conta própria roupas, armas e estruturas pra viver um pouco como os Vikings. Lucas, inclusive, lembra que o tal do recriacionismo é algo levado a sério na Europa desde os anos 70 — e que muitos museus de lá se apoiam nesses grupos na hora de reconstruir objetos de época.

Acampamento armado, enquanto acendem a fogueira, integrantes do grupo me falaram mais sobre a cultura do povo da Escandinávia, pioneiros da navegação, chegando a lugares nunca antes navegados, como o território que hoje representa o Canadá, a Groenlândia, o Leste Europeu, franjas da Ásia, a Península Ibérica e até a Constantinopla (hoje Turquia). Vestidos à caráter — Paulo César, 30, com direito a armadura e uma roupa que servia às geladas temperaturas nórdicas que batiam os -20º, -30º —, o grupo começou me serviu um pão Viking feito com farinha, manteiga e ovos (que lembrava um biscoito) e Natália Branco, 26, começava os preparos de uma sopa de peixe desidratado chamada de “Fiskesuppe” (“sopa de peixe” em norueguês).

Vale lembrar, como me alertou Lucas, que não existe um livro de receitas da Era Viking. “Ainda assim, cientistas e estudiosos têm sido capazes de recriar dietas e receitas com base em informações obtidas de exames de restos de cadáveres encontrados em escavações arqueológicas”. É assim, que se tem home conhecimento sobre o que comiam e como viviam na Escandinávia durante a Era Viking.

O grupo também me fala que o modo de preparo da sopa de peixe veio do Ribe Vikinge Center (um dos mais conceituados museus de “história viva” da Dinamarca). “Era uma receita comum durante toda a Escandinávia da Era Viking, especialmente nas zonas costeiras que estavam em contato direto com a pescaria”, diz Lucas.

Numa panela de ferro pendurada sobre o fogo, foi refogada cebola e cenoura na manteiga — sim, os Vikings eram altamente tecnológicos e produziam queijo e manteiga a partir do leite de vacas criadas por eles. Depois de acrescentar a água ao refogado foi preciso esperar para a mistura começar a ferver (há registros em que ao refogado é acrescentada a carcaça do peixe pra dar mais sabor ao caldo).

Durante o preparo da sopa, Lucas também me contou que não havia açúcar na Era Viking e o sal, moeda de troca, era também a principal forma de conservar as carnes. “Se usava também a banha de porco e as carnes podiam ser defumadas e assim guardadas para a chegada do inverno”. Agricultores, os Vikings criavam animais que serviriam tanto para ajudar na lavoura quanto para alimentação e também caçavam bichos como veados, cervos, aves, javalis e lebres — o pessoal do Vestanspjor é tão bem paramentado que até pele de coelho, cabra e ovelha tinha no acampamento. A ideia, eles me contaram, é aproveitar todas as partes dos animais — por isso, os chifres acabam por virar os copos deles, chamados de “horns”.

Na parte das bebidas, o grupo me contou que os Vikings produziam sucos fermentados e como bons agricultores cultivando sobretudo trigo eles também faziam cerveja. Felipe Pedoneze, 25, me falou que a bebida fermentada do trigo era uma ótima fonte de carboidratos e que a bebida costumava ser “servida das crianças aos mais velhos.”

Com a água da sopa fervendo, era hora de jogar o peixe desidratado no caldo. Enquanto isso, os homens do grupo lançaram uma barriga de porco na grelha e espetaram umas linguiças. Temperadas só com sal grosso, as carnes assavam, e Natália terminava a sopa com bastante agrião e leite.

Todos reunidos, chegou a hora de dividir a cumbuca. A sopa, que surpreendeu os visitantes, parecia uma espécie de entrada do rango. A barriga de porco ficou uma coisa indescritível, com aquela gordura que se transforma depois do contato com o fogo. Ficamos lá nos refestelando, vendo que precisávamos abandonar o acampamento, mas já com saudades dos Vikings de Cotia.

Matéria original com fotos