Jogador da base do Cotia FC vira rapper, modelo e ator na Europa

Felipe Gabriel é jogador de futebol. Atacante. Nasceu em Ribeirão Preto e viveu a maior parte dos 25 anos de vida em São Paulo. Sonhava em ser atleta do Corinthians. Passou pela dificuldades de quem atuou na base do Cotia FC e também pela Matonense. Em 2015, foi tentar a sorte num clube da segunda divisão da Letônia, país situado no Mar Báltico, que tem cerca de dois milhões de habitantes – e isso mudou sua vida.

Felipe tinha tudo para ser um daqueles boleiros brasileiros que rodam o mundo sem que o mercado da bola tupiniquim saiba direito o paradeiro dele. Acontece que ele tem talento também fora dos campos de futebol.

Ele é rapper, modelo e ator de cinema famoso na Letônia e na Lituânia. Faz rimas em letão. Atuou em um longa metragem falado em lituano. “Morei na Lituânia para atuar no filme e aprender o idioma”, disse.

O cara ganhou notoriedade por conta de um vídeo clip da primeira canção que compôs e gravou com artistas da cena rap da Letônia. “Eu sou o único artista negro que canta rap por lá”,contou.

Para aprender a língua local, ele contou com a ajuda da namorada. “Eu a conheci em Olaine, cidade onde eu jogava. Depois de um jogo, os atletas que moravam lá deram uma festa. Ela estava lá. O idioma não foi problema porque ela fala muito bem inglês e também espanhol. Agora já fala um pouco de português. Ela foi essencial para eu aprender o idioma letão”.

Felipe Gabriel chegou na Letônia como lateral esquerdo. Passou a jogar mais na frente. Ele atuou pelos clubes AFA Olaine, RTU, FK Progress e Albatroz SC, todos da segunda divisão.

Ele acha que a vida que leva como músico, modelo e ator anda atrapalhando o interesse de times da Primeira Liga.

Mas o dinheiro que ganha fora dos gramados o ajudou a se estabelecer e conhecer a Europa. Daí a vontade de ficar onde está. Já tem propostas de outras equipes. Está esperando a pandemia passar para voltar a jogar.

Leia a entrevista completa com Felipe Gabriel

-Você foi para a Letônia jogar futebol e se tornou cantor, compositor,ator e modelo. Gosta disso tudo?
Gosto muito. Eu vejo como um desafio novo e sempre quero dar meu melhor. A proposta para ser um ator de cinema foi muito inesperada. Nunca nos meus maiores sonhos achei que iria me ver nas telas do cinema. Eu sempre tento dar meu 100% em tudo.

-E não cansa tantas atividades ao mesmo tempo?
Infelizmente é muito complicado fazer muitas coisas ao mesmo tempo, principalmente pelo desgaste físico. Em inúmeras vezes joguei virado, treinei virado, porque tinha show ou apresentação para fazer de madrugada em outras cidades da Letônia ou até na Lituânia. Jogando na segunda divisão da Letônia, eu não posso depender só do futebol para pagar o estilo de vida que levo.

-Como assim?
Então, esse estilo de vida de fazer apresentação, de viagens, vida noturna talvez tenha comprometido a minha reputação com os times da Premier League da Letônia. Acho que é por causa dessa minha fama no país e de ser praticamente um dos únicos negros que fala russo e letão. Todos os diretores, presidentes, técnicos da primeira divisão me conhecem. Mas vamos ver como serão as cenas dos próximos capítulos.

-Como você virou um rapper?
A música foi uma brincadeira. Eu sempre gostei de rap. Sempre rimava em português, assistia batalhas de rap do Brasil e batalhas americanas. Eu fiz amizade com um pessoal do rap daqui e tentava fazer umas rimas em letão. Um desses rappers uma dia me disse: “Essa rima foi muito boa. Você deveria pôr no papel”. Na época eu jogava pelo Olaine, a 25 quilômetros da capital, Riga. Eu sempre ia para lá encontrar meus amigos. Um dia, voltando pra casa, comecei a escrever rima atrás de rima e mandei um áudio para o meu amigo.

-Rimas em letão?
Sim. Claro que tinha muitos erros e ele me corrigiu. Afinal era meu primeiro ano na Letônia. Fomos para o estúdio, gravamos com outros amigos. Só por curtição. Então decidimos fazer um vídeo e colocamos no YouTube. A repercussão foi enorme. Até então eu não sabia que tinha me tornado o primeiro negro a escrever uma música na Letônia e uma música boa que tocou nas rádios, televisão, nos shopping centers.

-Pegou você de surpresa?
Foi uma grande surpresa. E na época que lançaram a música no YouTube, eu estava no Brasil. Foi durante a madrugada. Foi o dia em que eu mais recebi notificações no celular na minha vida. Eu não sabia o que estava acontecendo. Então foi uma grande surpresa.

-Qual o nome da música?
O nome da musica é “Nac Ar Mums”. Em português significa “Vem Com A Gente”.

-Quem é o rapper que ajudou a gravar a música?
Esse cara é conhecido por Elfs. Ele tem um estúdio. Fui lá gravar e ele gostou da minha música e decidimos gravar juntos. O nome da música é “Balts Un Melns”, que quer dizer “Preto e Branco”. Nela, falamos sobre o racismo na Letônia, que muitos acham que não existe.

-Qual sua importância no cenário do rap letão?
Eu sou muito famoso na cena do rap na Letônia, pelo fato de todos os rappers aqui acompanharem a cena americana e gostarem de negros. Os rappers mais famosos me admiram muito e vão aos meus shows.

-E a carreira de modelo. Tem feito muitos trabalhos?
Sim, muitos. Só no ano passado fiz trabalhos para Sprite, Coca-Cola, Fanta, Burberry, Valmiera Piens (marca de leite famosa daqui) e outras pequenas marcas. Agora nesse ano de 2020. Tenho contrato com a Adidas, Redbull, Pringle’s e um posto de gasolina chamado Viada, que já está sendo motivo de piada entre meus amigos brasileiros (risos).

-E como você foi parar na telona do cinema?
Nas horas vagas, faço uns vídeos pro YouTube falando em letão. Tenho um canal com 20 mil inscritos e tenho uns vídeos com 200 mil acessos, Para a Letônia é bastante. Meus vídeos fazem muito sucesso na Letônia e a agência de modelos e atores de lá não achavam um ator negro na Lituânia que falava lituano. Então eles me acharam e me ofereceram o papel principal, com a condição de aprender o idioma lituano em um mês.

-Você topou?
Gostei do desafio e da oportunidade de fazer cinema. Me mudei para a Lituânia de maio a julho. E gostei muito de atuar. Recebi muito elogios, apesar de ser muito difícil atuar em uma língua que você não sabe, por conta de expressão, emoções. O filme ficou muito bom e é o filme mais assistido da Lituânia e com isso me tornei o primeiro negro da história a falar lituano no cinema e primeiro negro a ser protagonista em um filme lituano.

-E o futebol. Você está jogando?
Dei uma pausa. Quase parei de vez porque recebi a proposta de ser homem do tempo do telejornal da manhã daqui. Isso talvez iria abrir muitas portas pra mim. Com o dinheiro que eu estava ganhando com propaganda, eu decidi viajar e fazer coisas que eu nunca tinha feito.

-Tipo…
Como ir para os EUA e visitar um dos meus melhores amigos que é um astro da NBA. Também viajei pela Europa. Acompanhei de perto a Fórmula 1.

-Você não sentiu saudade da bola?
Senti. O futebol me fez muita falta. Então, como recebi propostas de três times da segunda divisão que têm planos de subir para a Premier League, decidi voltar a jogar. Mas, por conta da pandemia, o campeonato não começou e provavelmente vai ser cancelado, eu não assinei contrato.

-Qual a situação da pandemia na Letônia?
Por enquanto, está controlada. A Letônia é um dos países com menos mortes na Europa. Estamos em quarentena, há um distanciamento de pessoas, temos que andar sempre a dois metros dos outros. O aeroporto está fechado. A única fronteira aberta é com a Lituânia. As divisas com a Rússia e Estônia estão fechadas. A quarentena deve se estender até 14 de julho.

-Como foi sua passagem pelo futebol brasileiro?
Bom, minha carreira no Brasil foi meio que “triste”. Fui federado a primeira vez no Cotia FC. No meu primeiro ano de sub-20 fui muito pouco utilizado. No ano seguinte, na Matonense, as condições não era das melhores. No alojamento, haviam 30 a 40 cabeças morando juntas, banho de água gelada, tinha dia que não havia mistura para comer. Uma época, eu lembro, que só tinha arroz e água para comer. Técnico e preparador físico roubavam as encomendas que meus pais mandavam (desodorantes, bolacha, salgadinho). Mas isso foi muito bom para eu evoluir. Sempre digo que tem coisas ruins que acontecem para o bem da pessoa. Mas meu sonho foi sempre jogar em alto nível no Brasil, principalmente no Corinthians.

-Como você foi parar na Letônia?
Eu estava na época jogando na Matonense e um amigo estava aqui na Letônia. Até então nem conhecia o país. Meu meu plano era vir para cá, me destacar no esporte, disputar uma temporada e fazer ponte para jogar na Rússia.

-O futebol aí é de bom nível?
O futebol aqui é muito diferente e muito difícil. Todos acham que o futebol na Letônia é fraco, mas estão enganados. Muitos bons jogadores vem aqui emprestados por grandes times como Fluminense, Vasco e Corinthians. Em 2018 fiquei muito amigo do Gael Eto’o, filho do Samuel Eto’o. Ele jogou no Barcelona e Chelsea. Aqui ele confirmou que o futebol é muito diferente e difícil. Então, muita gente no Brasil fala que meu sucesso na Letônia é porque futebol aqui é muito fácil, mas estão errados.

-Como você se saiu no futebol antes da carreira artística?
Em 2016, no meu primeiro ano, recebi o prêmio do melhor jogador de setembro. Em 2017, ganhei um quadro autografado por Pelé como prêmio de progresso do ano. Mas a melhor coisa pra mim é o público que vai me assistir quando eu vou jogar no interior ou nas cidades mais distantes de Riga. Crianças que se inspiram em mim vem falar comigo. Por conta disso, eu tenho meu projeto de futebol, onde dou aulas de futebol para estas crianças, faço discurso motivacional, incentivando a jogarem futebol e não irem para a bebida e para o cigarro. Aqui as crianças começam a beber com 13-14 anos. Então muitas sou visto como um exemplo, principalmente por jogadores de clubes e da seleção de base.

-Você pretende morar na Letônia?
Por enquanto sim. É difícil deixar a Letônia depois de tudo que conquistei e começar do zero em outro lugar. Mas nunca sabemos o dia de amanhã, principalmente jogando futebol. Nunca sabemos quem está assistindo ao jogo e o que pode acontecer em uma partida.

Por Luciano Borges – ESPN