Os ensinamentos de Valéria, a primeira advogada cega do Brasil

No mês dedicado à luta das mulheres, devemos lembrar também das barreiras enfrentadas por aquelas que possuem algum tipo de deficiência. Se as mulheres que não têm nenhum tipo de deficiência já enfrentam dificuldades, principalmente no mercado de trabalho, a situação é ainda pior para aquelas que precisam de algum tipo de adaptação para exercer uma atividade.

Quem teve de enfrentar essas barreiras foi a advogada Valéria Mendes Siqueira. Ela contou à professora Leomar Marchesini, coordenadora dos serviços de inclusão (Sianee) da Uninter, como foi entrar para a área do Direito sendo deficiente visual. A conversa aconteceu durante o programa Inclusão em Rede, que foi ao ar no dia 12.mar.2021 com o tema “Mulheres Vitoriosas: Valéria Mendes, uma advogada cega de sucesso” (acesse a versão completa clicando aqui).

Quem é Valéria?

Leomar apresentou sua entrevistada como “uma mulher de destaque, uma mulher vitoriosa, uma mulher que tem a vida plena, que tem uma postura de enfrentamento, de vigor diante da vida”. Todos esses elogios não são por acaso. Quando perguntada sobre sua profissão, Valéria responde: “qual delas?”. Ela é massoterapeuta e atende em diversas especialidades. Além disso, também se formou em Direito. Com este último, conseguiu o cargo de responsável pelo Centro de Inclusão e Apoio da Pessoa com Deficiência da OAB do Paraná, e exerce a advocacia de forma autônoma.

O direito ainda lhe reservou mais alguns títulos. Valéria é a primeira advogada cega contratada pelo OAB no Paraná e no Brasil. Ela relembra que conquistou seu registro na entidade uma semana após sua colação de grau, em 2013. “No exame em que eu passei, passaram somente 9% das pessoas no Brasil. Foi considerado um dos exames mais difíceis da segunda fase da OAB. Eu quase gabaritei a minha prova”, conta com orgulho.

Hoje ela também é membro na WDRPA (World Disability And Rehabilitation Professional Association). A organização visa capacitar e reabilitar pessoas com deficiência para que se tornem autônomas. A iniciativa reúne 13 países, e o Brasil foi o primeiro a participar em toda a América Latina, tendo Valéria como representante. Seu objetivo é trazer o trabalho da WDRPA para o país. Ela afirma que esse é um novo desafio, afinal “as reuniões são todas em inglês e eu não domino a língua”.

Antes de dar certo, dá errado

Para chegar neste patamar, Valéria passou por diversos percalços. Perguntada sobre sua deficiência, ela explica que nasceu com uma doença degenerativa, mas que enxergava muito bem. “Fiz tratamento no Rio de Janeiro dos 13 aos 15 anos, quando estacionou meu problema de visão”, conta.

Entretanto, quando ficou grávida, aos 25 anos de idade, a doença voltou a progredir. “Aí, em uma cirurgia de cataratas, aos 27 anos, quando minha filha tinha 1 ano e 2 meses, eu perdi a visão. Eu digo que entrei enxergando no hospital e saí de lá guiada. Foi uma fase complicada”, relembra.

O termo “complicada” não foi apenas por conta da perda da visão. “Eu fiquei cega, o pai da minha filha tinha uma namoradinha e foi embora, minha filha tinha um ano e dois meses e eu tinha saído do trabalho, porque ela não aceitou mamadeira. E já estava acabando as parcelas do meu seguro. Eu fui traída, abandonada, com neném para criar e sem dinheiro. Tudo de uma vez só”, explica.

Ela explica que pôde contar com a ajuda dos pais, mas passou por situações bem difíceis: “Cheguei a ligar, limpar e desligar a geladeira porque não tinha nada para pôr dentro”, conta.

Foi neste dia que ela chorou e decidiu virar a chave, “tomar as rédeas da própria vida”, e então iniciou sua jornada de aprendizados. Valéria começou a estudar sobre o processo de reabilitação. Aprendeu a usar o programa de voz do computador e do celular, aprendeu a andar de bengala e ainda foi atrás de especializações em massoterapia.

“Estudei medicina chinesa durante 5 anos, então eu gosto de associar pontos de acupuntura dentro da terapia. Cuidar de pessoas é o que eu gosto de fazer”, relata.

O Direito veio depois. Segundo conta, essa foi a primeira faculdade que concluiu depois de cega. Agora, está quase terminando uma formação em psicanálise. As aulas são online com professores de São Paulo, e o certificado deve vir até no final deste ano. “Eu estou com uma vontade de voltar para graduação e fazer psicologia, por conta da psicanálise”, diz entusiasmada.

A advogada complementa ainda que “estudar é uma coisa que a gente nunca deve parar. O estudo deve ser constante”. A professora Leomar concorda, e ainda acrescenta: “Em todas as áreas, né? Porque tudo está sofrendo tantas mudanças. Hoje na Medicina se diz que o médico que não estuda, mata o seu paciente”.

A coordenadora do Siane complementa destacando “aquela visão de que estudar é liberdade”. Afinal, quanto mais você estuda, mais opções você terá. Mais livre você vai estar. E Valéria entendeu isso muito bem.

Do Uninter Notícias