Caixa coloca jogo que não existiu na Loteca e pode ter lesado apostadores

Um erro da Caixa Econômica Federal na programação de um concurso recente da Loteca (ex-Loteria Esportiva) pode ter causado prejuízo a centenas de apostadores.

O erro aconteceu no concurso 674, com partidas marcadas para os dias 10 a 13 de outubro. O jogo 12 apontava o confronto entre Nigéria e Somália, e foi com base nessa informação que os apostadores preencheram seus volantes. Ocorre que a partida, válida pelas eliminatórias africanas para a Copa do Mundo de 2018, não existiu. A partida que ocorreu foi Níger x Somália.

Como o jogo programado pela CEF não aconteceu, a instituição apontou o ganhador do confronto entre Níger x Somália por meio de sorteio, expediente utilizado quando uma partida é antecipada, adiada ou cancelada – o que não era o caso, para o qual não há regra específica. A Caixa, porém, diz que realizou procedimento “conforme previsto na legislação”.

Teoricamente, a Nigéria, uma das potências futebolísticas da África e atual número 52 no ranking da Fifa, seria franca favorita contra a Somália, que ocupa a 203ª colocação, ao lado da Mongólia e à frente de apenas cinco países. O Níger (posição 120) também seria favorito, tanto que ganhou a partida por 4 a 0. Mas, se os apostadores soubessem que o jogo 12 iria a sorteio, naturalmente poderiam optar pelo palpite triplo, de modo a garantir o ponto.

No regulamento dos sorteios das loterias de prognósticos esportivos, disponível no site da Caixa, o item 1 afirma textualmente que o sorteio “é utilizado para determinar o resultado de cada jogo incluído no concurso da Loteca e para determinar o escore de cada jogo incluído no concurso da Lotogol não realizado no período programado”. Nenhuma palavra sobre confrontos incluídos equivocadamente no concurso e, portanto, de realização impossível.

Além disso, no comunicado que publicou em seu site após a apuração do resultado do concurso, a CEF omitiu o próprio erro, dizendo apenas o seguinte: “A Caixa informa que, em função da não ocorrência do jogo 12 (Nigéria x Somália) programado para o concurso 674 da Loteca, o resultado, para efeito de apuração dos ganhadores do referido concurso, foi obtido por meio de sorteio, realizado no dia 13/10/2015, em Brasília/DF”.

O sorteio apontou coluna 2 (vitória da Somália), derrubando a chance de centenas de apostadores completarem os 14 pontos e, com isso, fazerem jus ao prêmio principal. O resultado de toda a confusão é que apenas seis pessoas conseguiram a pontuação máxima, ganhando R$ 56.043,80 cada uma. Já as 351 que fizeram 13 pontos tiveram que se contentar com o prêmio secundário, de R$ 293,26 para cada ganhador.

Obviamente, se o número de acertadores do prêmio principal tivesse sido maior, o valor rateado entre eles seria menor. Além disso, não é possível saber quantos dos 351 vencedores do prêmio secundário erraram justamente o jogo 12. Questionada pelo UOL Esporte, via e-mail para a sua assessoria de imprensa, a Caixa não forneceu o percentual de apostas realizadas em cada coluna desse jogo, afirmando apenas que a informação não está disponível.

Outro lado

Em relação à origem do erro na programação daquele teste, a Caixa diz que “recebeu a informação da assessoria contratada para apoio às Loterias de Prognósticos Esportivos de que o jogo Nigéria x Somália, programado para o concurso 674 da Loteca, ocorreria no dia 13/10/2015. Contudo, a Caixa verificou que a referida partida não ocorreria”. Por isso, afirma o banco, o jogo foi a sorteio, “conforme previsto na legislação”.

Consultada novamente pelo UOL Esporte, a CEF não informou o nome da assessoria nem a data em que ela lhe passou a lista dos jogos relacionados para o concurso. Também não respondeu se confere com antecedência a veracidade das

partidas informadas pela empresa contratada. Insistentemente questionada, a Caixa não revelou em que data constatou o problema do jogo 12 nem por que omitiu, no comunicado sobre o sorteio, que se tratava de um erro dela própria na programação do concurso.

Em sua defesa, a Caixa afirma ter informado antecipadamente aos apostadores, de diversas maneiras, a realização do sorteio. Uma das medidas adotadas, diz, foi a publicação em seu site, no dia 8 de outubro (quinta-feira anterior às partidas), na seção Comunicados Importantes, de um aviso de que o jogo 12 iria a sorteio: “Ressaltamos que o site da Caixa é o principal canal de comunicação com os apostadores, além das casas lotéricas, e que aqueles detêm a cultura de se reportar àquele ambiente eletrônico para obterem informações atualizadas a respeito das loterias federais, em alternativa aos canais físicos”. A CEF alega também ter publicado a informação sobre o sorteio na edição do dia 9 (sexta-feira) do jornal “Valor Econômico”, “de circulação nacional”.

A seção Comunicados Importantes, porém, não aparece na home page da Caixa. O apostador precisaria ter desconfiado de algum problema no concurso para consultar tal seção, fazendo para isso uma busca no portal. Além disso, no dia 8 e no dia 9 várias pessoas já podiam ter feito suas apostas, uma vez que a programação da Loteca é divulgada às terças-feiras, e as apostas podem ser feitas somente até as 14h de sábado (dia 10, no caso).

A Caixa afirma também: “Os empresários lotéricos foram comunicados nacionalmente do fato acima (o sorteio) nos dias 6, 7, 9 e 10/10/2015, por meio de mensagens nos terminais financeiros lotéricos, para o devido esclarecimento aos seus clientes. Além disso, o comunicado foi também enviado às caixas postais dos empresários lotéricos no dia 6/10/2015, por meio de canal interno próprio de comunicação”. Ou seja, as 13.216 unidades lotéricas da Caixa espalhadas pelo país precisariam ter repassado a informação a todos os apostadores da Loteca.

A instituição argumenta ainda que “todas as apostas registradas concorreram normalmente e participaram do concurso com possibilidade de premiação. E as premiações devidas foram rateadas para as respectivas faixas de acertos, 14 e 13 pontos”. Acrescenta que “cumpriu rigorosamente também o disposto na Portaria do Ministério da Fazenda nº 356, de 16/10/1987, que normatiza os concursos de Prognósticos Esportivos”.

Segundo o banco, “nos casos em que a partida não é realizada na forma ou data inicialmente prevista, cabe à Caixa o cumprimento da legislação, que prevê a realização de sorteio para conhecimento de seu resultado”. Questionada pelo UOL Esporte sobre o fato de que o caso do concurso 674 não se enquadra nessa categoria, já que a partida em questão simplesmente não estava prevista, a Caixa apenas reiterou ter cumprido a legislação.

Apostadores não sabiam

Apesar de todos os esforços que a Caixa alega ter feito para informar os apostadores, muitos não ficaram sabendo que o jogo 12 iria a sorteio. Marcelo Deriz, de Belo Horizonte, foi um deles. Tanto assim que fez a aposta já no sábado, dia 10, às 12h06, cravando coluna 1 (Nigéria).

“Não fui informado hora nenhuma. Acredito que isso deveria ser informado nos balcões de aposta de todas as agências da Caixa, uma vez que ninguém é obrigado a consultar fontes alternativas de informação referente aos jogos”, reclama.

Deriz chegou a consultar um advogado sobre uma eventual ação contra a Caixa. Porém, como errou também outra partida do concurso, além do jogo 12, ele desistiu do processo em razão do baixo valor do prêmio secundário, a que julgava ter direito. “De qualquer forma, não penso em parar de jogar. Já acertei 13 pontos três vezes, uma hora vai”, afirma.

Ação indenizatória

Para Heloísa Carpena, procuradora do Ministério Público do Rio de Janeiro e especialista em direito do consumidor, o apostador que se sentiu lesado pode ingressar com uma ação indenizatória contra a Caixa. Em sua avaliação, a única solução possível teria sido o banco desconsiderar o jogo 12 para efeitos de premiação, rateando o prêmio principal para quem alcançou 13 pontos (e não os 14 de praxe) e o secundário para quem conseguiu 12.

De acordo com ela, a Caixa não deu a devida publicidade ao sorteio. “O problema está no momento e na forma que eles usaram para informar”, diz Heloísa. “Somente estaria afastada a responsabilidade da Caixa, como fornecedora do serviço, se eles tivessem informado prévia e adequadamente. Os apostadores contrataram sem ter a informação, aceitando, legitimamente, que estava incluído aquele jogo (Nigéria x Somália). O sorteio foi uma solução ruim porque manteve a aleatoriedade, tirando a chance daqueles que realmente conhecem os times alcançarem a pontuação máxima.”

Segundo a procuradora, cada apostador pode recorrer à Justiça individualmente, mas o ideal seria uma ação coletiva, ajuizada pelo Ministério Público. Nesse segundo caso, somente ao final do processo os apostadores precisariam procurar o MP para provar (mediante o recibo da aposta) seu direito ao ressarcimento. “Este caso é muito procedente (do ponto de vista dos consumidores que reclamarem), o que não quer dizer que eles vão ganhar”, afirma ela.

Heloísa Carpena compara a situação dos apostadores à de Ana Lúcia Serbeto de Freitas Matos, que participou no ano 2000 do “Show do Milhão”, programa de prêmios então exibido pelo SBT. A pergunta final (“A Constituição reconhece direitos aos índios de quanto do território brasileiro?”), que valia R$ 1 milhão em barras de ouro, não tinha resposta certa, já que inexiste essa previsão no texto constitucional.

Ana Lúcia preferiu não arriscar nenhuma das quatro alternativas apresentadas pelo programa, preservando assim o prêmio de R$ 500 mil que ganhara até ali – se errasse a resposta, receberia apenas R$ 300. Depois, porém, ela entrou com uma ação contra a BF Utilidades Domésticas, empresa do grupo Silvio Santos responsável pelo pagamento dos prêmios, pedindo reparação por danos morais e materiais.

No julgamento final do caso, em novembro de 2005, o Superior Tribunal de Justiça considerou que a participante tinha direito ao valor proporcional à chance que teria se alguma das quatro respostas estivesse correta. Assim, o STJ condenou a BF a ressarcir Ana Lúcia em R$ 125 mil, ou seja, um quarto dos R$ 500 mil adicionais a que ela deixara de concorrer por desistir da “pergunta do milhão”.

Decadência

Ganhar na Loteca já foi o maior sonho de consumo dos brasileiros, mas atualmente ela é uma das loterias da Caixa que menos atraem apostadores. O prêmio para os 14 pontos raramente passa de R$ 1 milhão (o que só acontece quando fica acumulado por pelo menos duas semanas), enquanto a Mega-Sena, por exemplo, com frequência paga valores superiores a R$ 20 milhões na faixa principal. Nos concursos realizados de junho a outubro deste ano, o prêmio principal da Loteca valeu, em média, R$ 538.675,44.

É uma situação muito diferente da que existiu durante vários anos a partir de 1970, quando a então Loteria Esportiva foi criada no país. Muitos brasileiros sonhavam com os milhões da Loteca (apelido que bem mais tarde se tornaria o nome oficial). Gente como o despachante carioca Eduardo Varela, o Dudu da Loteca, que ganhou 11,6 milhões de cruzeiros ao ser premiado sozinho em 1972, comprou vários imóveis de alto padrão e depois perdeu quase tudo ao se separar da mulher.

Ou o boiadeiro Miron Vieira de Souza, de Ivolândia (GO), que em 1975 levou sozinho 22 milhões de cruzeiros, adquiriu terras e gado e tornou-se um próspero fazendeiro. Após receber o prêmio, no entanto, uma de suas primeiras providências foi comprar uma dentadura.

Por Mário Moreira, do Uol